hilda hilst bot

(...) que eu beba a água da fonte sem procurar o ouro, que eu atravesse as manhãs imaculado e torpe a um só tempo, olhando sem perguntar, tateando a mim mesmo sem perplexidade (...)

Se me encontrares terei um jeito de flor e um não sei quê de brisa nos meus ares.

Homens distantes do mundo sucumbidos pelo sonho, dia virá em que as naus estarão sem nenhum porto e as velas sem direção. Nem haverá uma estrela buscando o brilho de outrora e sem ela algum poeta fazendo um último apelo: — Procurem o poema virgem.

Sou náufrago de mim mesmo e jardineiro. Estou no fundo mas semeio como se estivesse fora. Sou verdugo numa sala de aula. Se me perguntam não respondo. Este sou eu.

(...) mas agora é preciso esquecer, compreendes? Agora estou aqui e não sinto o teu cheiro, sinto o cheiro da minha própria carne (...)

(...) seu corpo é um grande instrumento que ainda não foi pensado pelos homens mas capaz de produzir os sons do oco, som de duas mãos unidas mas vazias, lá dentro a vida tem um canto-pulsação que ouvido nenhum ouviu (...) mas sei que existe porque assim me diz minha alma antiga.

Olha estas linhas finas que se formaram acima do lábio (...) dão um aspecto velho e muito triste (...) Nem poderia deixar de ser assim, eu só poderia ser velha, carregando o peso desses mortos, eu tenho milhões de anos, eu tenho tantas culpas (...) sou lasciva, cruel, assassina.

(...) há sonhos que devem permanecer nas gavetas, nos cofres, trancados até o nosso fim. e por isso passíveis de serem sonhados a vida inteira.

Não sentes então, numa soma final, que é mais dor do que alegria o existir?

Lavado de luzes, um deus me movimenta. Indiferente.

Barcas carregando a vida descendo as águas. Passam pesadas distantes do poeta e de sua caminhada.

Se pudesses esquecer, Hillé, teias, torsões, sentir a minha mão sem o teu vivo-morte, te acaricio apenas, olha, é a mão de um homem, vê que simples, dedos, mornura, te acaricio apenas, e tua pele teu corpo vai sentir a minha mão como se a água te circundasse (...)

E ainda que as janelas se fechem, meu pai, é certo que amanhece.

Os sentimentos vastos não têm nome. Perdas, deslumbramentos, catástrofes do espírito, pesadelos da carne, os sentimentos vastos não têm boca, fundo de soturnez, mudo desvario, escuros enigmas habitados de vida mas sem sons (...)

E porque paz e voo me faltavam eu desejei perder-me mais e tanto quanto fossem as perdas destinadas àqueles incapazes de algum pranto.

E era tanta a vontade de ver mais que uma névoa descia sobre mim. E o que eu queria ver, via jamais.

Quando Ehud morreu morreram também os peixes do pequeno aquário, então recortei dois peixes pardos de papel, estão comigo aqui no vão da escada, no aquário dentro d’água, não os mesmos, a cada semana recorto novos peixes de papel pardo, não quero mais ver coisa muito viva (...)

(...) depois tomei um ônibus, desci e continuei andando… bebo ou não? E bem na minha frente um bar. E bêbados. E uma mulher. Todos alegres, rindo. Sentei-me no balcão e comecei a beber. E o medo da vida, dos acontecimentos, da extremada pobreza, tudo isso passou.

Eu amo Aquele que caminha antes do meu passo. É Deus e resiste. Eu amo a minha morada, a Terra triste. É sofrida e finita e sobrevive. Eu amo o Homem-luz que há em mim. É poeira e paixão e acredita.

Que sobreviva o fino traço de tua presença.

Te sei. Em vida provei teu gosto. Perda, partidas, memória, pó. Com a boca viva provei teu gosto, teu sumo grosso. Em vida, morte, te sei.

Vive o carmim, Samsara. A ferida.

(...) o brilho no costado de algum peixe quando ele sai debaixo da pedra, dá duas ou três voltas rápidas e retorna à toca. Vida tão colorida, mãe, dá medo essas cores da vida, eu disse de manhãzinha olhando o rosa-roxo do capim. Ela me olhou como quem entendeu.

(...) como é bom estar sozinho. fazer planos para ficar cada vez mais sozinho. uma ilha, quem sabe. e os cães e os gansos. alguns pássaros.

Dá-me a via do excesso. O estupor.

És presente como um vento que corre entre portas abertas.

Hoje é domingo, o sol está batendo nas minhas patas, estou muito triste porque hoje exatamente faz dois anos que estou aqui, e me lembro como estava quando cheguei, como eu tinha esperança de conquistar o amor dos que me vissem.

(...) é rei se foge de nós? é rei ainda se na miséria nunca se demora? e estribilhos novos: é rei se não chora conosco? se não morre com seu povo?

Irmão do meu momento: quando eu morrer uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo: morre o amor de um poeta. E isso é tanto, que o teu ouro não compra, e tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto, não cabe no meu canto.

De montanhas e barcas nada sei. Mas sei a trajetória de uma altura e certa fundura de águas e há de me levar a ti uma das duas.