Fórmula 1 x Copa Truck: como os extremos da pista viram laboratório de pneus
_Do carro mais rápido do mundo aos brutos da Copa Truck, engenharia e pilotagem se encontram em um ponto em comum: quatro áreas de contato com o asfalto. Luiz Mari, Engenheiro da Prometeon e Bia Figueiredo, embaixadora da Prometeon e pilota da Copa Truck, explicam como os pneus decidem performance, segurança e até campeonatos._ **O elo entre engenharia e pilotagem: pneus como ponto decisivo** Quem já esteve à beira da pista em uma etapa da Copa Truck sabe que a palavra “bruto” não é exagero. Cada vez que um pelotão de caminhões mergulha em uma curva ou freia no fim de reta, o paddock inteiro treme. Para quem acompanha de perto a Fórmula 1, acostumado à precisão cirúrgica dos carros mais rápidos do mundo, é quase um choque sensorial descobrir que, na base daquela brutalidade, o pneu é tão protagonista quanto em um fim de semana de Grande Prêmio. É justamente essa ponte que a Prometeon, fornecedora oficial de pneus da Copa Truck, ajuda a construir. Em entrevista ao **F1Mania.net** , o diretor de pesquisa e desenvolvimento da marca, Luiz Antonio Costa Mari, explica que, embora Fórmula 1 e Copa Truck vivam universos opostos em velocidade, peso e dinâmica, os dois ambientes servem como laboratórios extremos para desenvolvimento de pneus – cada um ao seu modo. **F1 x Copa Truck: duas filosofias opostas de pneu** Segundo Luiz, o ponto de partida da Fórmula 1 é sempre a performance. “O pneu de Fórmula 1 nasce com o objetivo de extrair o máximo do tempo de volta. Toda a estrutura e todos os compostos são desenhados cem por cento para atender essa premissa”, afirma. É por isso que há um pneu específico para a tomada de tempo no sábado, pensado para entregar tudo em uma ou duas voltas rápidas, e outro para o domingo, que precisa combinar velocidade com durabilidade durante o stint. Na Copa Truck, a lógica é quase inversa. O pneu não nasce para a corrida: ele nasce para a estrada. “O pneu que vai para a pista é exatamente o mesmo pneu que vendemos para grandes frotas, um pneu standard, da nossa linha premium série 02”, explica Luiz. “A diferença é que, na corrida, ele é submetido a uma condição de uso muito mais severa que qualquer estrada poderia impor.” É o mesmo 295/80 R 22,5 usado no transporte pesado, colocado no limite da frenagem, da aceleração e da carga lateral em autódromos do Brasil inteiro. E não existe variação entre as equipes: “Todos correm com o mesmo padrão de pneu, distribuído pela própria organização. É tecnologia igual para todos.” Isso eleva o desafio ao extremo. Em um fim de semana típico da Copa Truck, um jogo de pneus costuma durar treinos, classificação e corridas, em ritmo máximo, sem necessidade de troca. “Só substituímos em caso de furo ou dano por acidente”, conta o engenheiro. “Mesmo sob exigência máxima, o pneu aguenta a etapa inteira.” Na prática, o mesmo produto que precisa ser robusto, reconstruível, durável e seguro ao longo de sua vida útil no transporte de carga é obrigado a suportar, volta após volta, tudo o que um caminhão de corrida é capaz de entregar: torque absurdo na largada, transferência de carga na frenagem, carga lateral na saída de curva e, por cima de tudo, calor. [caption id="attachment_523175" align="alignnone" width="2000"] Foto: XPB Images[/caption] **Temperatura, desgaste e o papel da Copa Truck como laboratório acelerado** É aqui que o diálogo com a F1 reaparece com força. Para Luiz, a temperatura continua sendo o grande inimigo de qualquer borracha, seja em um monoposto ou em um truck de mais de quatro toneladas. “A temperatura é o grande mal de qualquer borracha. Quando aquece demais, a borracha degrada e perde suas propriedades físico-mecânicas”, diz. Em um caminhão de corrida, essa batalha se intensifica. A frenagem joga uma enorme carga para frente, os freios chegam a temperaturas altíssimas e parte dessa energia é transferida para o pneu. Na saída de curva, ele precisa suportar ao mesmo tempo a carga vertical e a lateral, mantendo aderência em um asfalto que, em muitos autódromos brasileiros, é notoriamente abrasivo. Para entender e controlar esse cenário, a Prometeon usa a Copa Truck como um laboratório acelerado. A cada etapa, um time de engenheiros acompanha os caminhões nos boxes, conversa com as equipes, observa o comportamento dos pneus ao longo dos treinos e corridas e coleta dados. Pressão e temperatura são os parâmetros mais sensíveis, porque cada equipe trabalha com ajustes ligeiramente diferentes, em busca de uma combinação ideal com a suspensão e com o estilo de pilotagem do seu piloto. “Temos um time que participa de todas as etapas nos boxes, coletando pressões, temperaturas e padrões de desgaste. Em algumas corridas, já usamos sensores específicos para refinar o mapa de dados”, relata Luiz. Esse banco de informações retorna para o time de pesquisa e desenvolvimento, alimentando um ciclo contínuo de melhoria de compostos, processos e integração de materiais. “A Copa Truck é um laboratório acelerado. Em poucas horas, conseguimos informações que levariam meses para surgir em uso normal de estrada.” E assim como na F1, onde a pressão mínima dos pneus muda o comportamento do carro, na Copa Truck a calibração é uma arte fina. “Cada equipe trabalha com pressões ligeiramente diferentes, combinando com a suspensão e com o estilo do piloto. Uma pressão pode deixar o caminhão mais estável, outra pode deixá-lo mais agressivo”, explica. Ele recorre a um exemplo clássico para ilustrar a relação entre dinâmica de veículo e talento: “A gente sempre lembra do Senna. O carro dele era muito instável, inguiável para os outros, mas ele ganhava tempo com isso.” Luiz compara esse estilo com Max Verstappen hoje, com a dianteira arisca e extremamente responsiva. “Na Copa Truck é a mesma lógica. Quem consegue domar um conjunto mais nervoso pode ser mais rápido.” Além da pista, Luiz destaca uma estrutura que pouca gente conhece: o centro de pesquisa da Prometeon em Santo André. “Somos a única empresa pneumática com um centro de pesquisa para pneus profissionais no Brasil”, afirma. Ali, a marca desenvolve, por exemplo, todos os pneus agrícolas usados pela Prometeon no mundo. “Todo projeto agrícola nasce aqui, cem por cento”, diz. A mesma cultura técnica aplicada ao desenvolvimento global é a que está sobre o asfalto quando os trucks entram para acelerar. **A visão de Bia Figueiredo: sensações, diferenças e desafios da pilotagem** Essa soma entre laboratório de pista e engenharia de bancada ajuda a explicar por que a Copa Truck tem um valor estratégico semelhante ao da Fórmula 1 para fabricantes de pneus. Em ambas, o limite real passa pelas quatro pequenas áreas de contato com o asfalto – e entender como elas se comportam é o primeiro passo para criar pneus mais seguros, duráveis e eficientes para o mercado. É nesse ponto que a engenharia encontra a pilotagem. Se Luiz enxerga gráficos de pressão e temperatura, quem está no cockpit sente tudo isso no corpo. Com a experiência de quem já freou um IndyCar a mais de 300 km/h e hoje encara os caminhões de corrida, Bia Figueiredo completa o quadro a partir de dentro da cabine. Para Bia, a referência de maior desempenho ainda vem da Fórmula Indy, mas a comparação com um caminhão é quase radical. “A minha referência talvez de maior desempenho é a Fórmula Indy, mas é completamente diferente”, disse Bia ao **F1Mania.net**. “O Indy é um carro com aerodinâmica absurda, relação peso-potência grande, reações muito mais rápidas e forças G gigantescas. Ele acaba sendo um carro muito mais físico.” No outro extremo, está o truck: “É um caminhão totalmente preparado para a corrida. Você escala para entrar no cockpit, não desce para o chão, sobe. Os freios são freios de ônibus, de ar e água, então o jeito de frear é totalmente diferente. No Fórmula Indy você dá aquela pisada forte aproveitando a aerodinâmica; no Copa Truck você tem uma frenagem leve, porque senão trava tudo.” Ela resume a sensação com uma analogia simples: “É quase como jogar tênis e pingue-pongue. São esportes primos, mas muito diferentes.” [caption id="attachment_525793" align="alignnone" width="2000"] Foto: Rodrigo Aguiar Ruiz/RR Media[/caption] **Regulamento, desgaste, acertos e impacto estratégico dos pneus** Se na Fórmula 1, Indy e em outras categorias de monoposto o piloto persegue a "janela perfeita” dos pneus, na Truck o jogo é outro – e ele começa bem antes da largada. Pelo regulamento, as equipes têm um número limitado de pneus para a temporada e obrigatoriedade de trocar os traseiros em etapas específicas. Os pneus traseiros são usados na medida original, com cerca de 17 mm de sulco. Já os dianteiros passam por um processo curioso: “Os pneus dianteiros a gente lixa até sete milímetros, e por regulamento pode andar com eles até chegar em um milímetro. Pode ficar quase slick, não pode deixar slick. Se passar disso, é desclassificado”, explica Bia. O resultado é quase contraintuitivo para quem está acostumado à F1 ou à própria Indy. “Basicamente, não sempre, mas o pneu mais usado é o melhor, porque ele está mais slick, mais baixo.” O contraste aparece com força quando ela fala sobre pneus novos. Em categorias de fórmula, a volta de saída com um jogo zerado costuma ser sinônimo de grip imediato. Nos caminhões, o cenário é oposto. “Quando você coloca o pneu novo, aquele dianteiro de sete milímetros, o começo é horrível. Está alto, tem cera. Às vezes eu preciso de três, quatro voltas para tirar a cera, para ele se organizar. Não é que depois você tenha uma grande melhora, mas aí fica ok, fica bom de novo”, explica. Na prática, o truck fica mais afinado justamente à medida que o pneu vai sendo usado. A gestão de pneus, no entanto, não se limita à sensação de volante. Há um componente estratégico direto no campeonato. “Você tem 20 pneus por temporada que a equipe tem que administrar certinho. Se usar um pneu a mais, você perde pontos no campeonato”, lembra Bia. Em um grid equilibrado, essa conta pesa. “Os pneus podem decidir corrida, mas também podem decidir campeonato. Se você começa gastando mais no início do ano, chega no fim de temporada com menos margem. Então essa gestão piloto e equipe é super importante.” Na prática, isso significa conviver com um nível de complexidade diferente da Fórmula 1. Se na F1 a Pirelli leva gamas diferentes a cada etapa, com macios, médios e duros e estratégias que começam a ser desenhadas ainda no simulador, na Truck a lógica é muito mais “pneu único, orçamento real”. Bia não hesita em admitir: “Confesso que, em termos de pneu, é uma das categorias mais fáceis que existe. Basicamente, você está sempre ligado em libra, um pouco de temperatura. Na Fórmula 1 você tem macio, médio, duro, toda uma estratégia envolvida. Aqui o foco está muito mais na tocada e em tentar preservar o pneu em pistas mais abrasivas.” [caption id="attachment_525795" align="alignnone" width="2000"] Foto: Rodrigo Aguiar Ruiz/RR Media[/caption] Ainda assim, a pilotagem não é simples. Um dos maiores desafios é conviver com o peso e o centro de gravidade do caminhão, que muda completamente a leitura de curva. Além disso, a Copa Truck é uma categoria extremamente “manual” na construção dos veículos. “Na Copa Truck, você pega um chassi e os mecânicos cortam todo ele para ficar dentro do regulamento. É tudo muito artesanal. Tem todo um trabalho para baixar o máximo o centro de gravidade, deixar o peso o mais baixo possível”, explica. Diferente de categorias como a Stock Car, em que praticamente todo mundo parte de um mesmo pacote industrial, aqui cada equipe “constrói” seu truck dentro das regras. E isso impacta diretamente a forma como o caminhão conversa com o pneu. Nos acertos, a receita também muda. “O que me surpreendeu é que, em todas as categorias de fórmula e kart em que eu andei, se mexe muito em altura, cambagem, convergência. No Copa Truck é muito amortecedor”, diz Bia. “Tem um pouco de convergência, a cambagem no limite não se mexe porque é muito difícil fazer na pista. O acerto é muito em amortecedor, pré-carga, um pouco de altura e libra.” É por meio desses ajustes que ela pode deixar o caminhão mais “dianteiro” ou mais neutro, buscando o equilíbrio entre agilidade de entrada de curva e estabilidade para tracionar. Na pista, Bia garante que o desgaste e o comportamento dos pneus não desaparecem do radar – apenas se manifestam de maneira diferente. A leitura do volante é menos óbvia do que em um fórmula, mas existe. E o trabalho de temperatura segue sendo monitorado com cuidado. “A gente tem técnicos andando pelas equipes, medindo temperatura o tempo todo. Fica ali na casa de 90 a 100 graus, dependendo da pista e da condição”, explica. A boa notícia, do ponto de vista do piloto, é que a janela de funcionamento é mais ampla do que em um monoposto. Em muitas pistas, os pneus dianteiros duram até uma corrida e meia, com exceção de lugares muito abrasivos como Campo Grande, em que o desgaste é bem mais severo. Ao mesmo tempo, a experiência em outras categorias deixa claro para ela o quanto o pneu, sozinho, pode mudar o destino de uma corrida. Um dos exemplos vem da Stock Car, em Ribeirão Preto, em 2015, em uma etapa de rua com pista molhada e decisões difíceis de estratégia. “Foi uma corrida que me marcou muito, que me chateou demais. A gente arriscou pneu slick com a pista ainda úmida, tudo indicava que seria a escolha certa e eu tinha ritmo para brigar por pódio, até vitória. Só que peguei uma parte molhada na freada, travou tudo e bati no muro”, relembra. Anos depois, a memória segue viva exatamente porque a combinação entre pneu, condição de pista e tomada de decisão esteve no centro da história. **A evolução de Bia na Copa Truck** Na Copa Truck, Bia vive em 2024 a consolidação de uma nova fase. Depois de títulos na Truck e na Truck Elite, ela subiu para a classe Pro e passou a enfrentar, com o mesmo equipamento, alguns dos nomes mais experientes da categoria. “Eu fico muito feliz com a minha performance. Talvez não tanto com os resultados, mas com a performance sim”, avalia. “Na primeira etapa do ano eu perdi a pole por 16 milésimos. Tinha quatro pilotos em 16 milésimos. Em várias situações, sempre largando no top 5. Senti que sofri um pouco com o ritmo de corrida, porque na Elite eu largava na pole, faltava aquele ‘push’ de corrida inteira, de pegar a pegada com os caras super experientes, e fui construindo isso ao longo da temporada.” As últimas etapas, em Curvelo e Londrina, mostraram essa curva de aprendizado. “A gente estava super competitivo. Em Londrina, cheguei em segundo na pista e acabei punida por uma confusão na inversão de grid. São coisas de corrida, mas nada disso tira a questão da performance. Ter quase vencido a corrida em um ano de chegada na Pro é super positivo”, diz. Bia já projeta o futuro próximo: segue na Copa Truck na próxima temporada e mira manter um pé também em categorias de carros, como a Porsche Cup Endurance, para continuar exercitando o lado em que sua carreira começou. No fim, a história que se desenha entre as explicações de Luiz e os relatos de Bia é a mesma, vista de dois ângulos diferentes. Na prancheta do engenheiro, a Copa Truck coloca um pneu de estrada em um ambiente de pressão máxima, acelerando aprendizado e abrindo caminho para produtos mais robustos e seguros nas rodovias. No cockpit, cada libra a mais, cada milímetro a menos de sulco e cada grau de temperatura se traduzem em sensação de frenagem, tração, confiança e limite.