‘O homem é um animal cruel’, disse José Saramago em 1997
Esta entrevista, publicada originalmente em 1997, foi reeditada em 2025, para a edição especial dos 100 anos do jornal O GLOBO. O encontro cm a repórter aconteceu em Lisboa, mas Saramago era um frequentador assíduo do Brasil, com muitos amigos no país.
Que interesse pode ter um diário de um escritor português com notas de caráter local para o leitor brasileiro? A pergunta foi feita esta semana por José Saramago, diante da publicação dos “Cadernos de Lanzarote” no Brasil, pela Companhia das Letras. Ele já tentara minimizar a universalidade dessas 600 páginas na apresentação da edição portuguesa, em 1994. “Ninguém escreve um diário para dizer quem é”, resumira, com a sua habitual crua sinceridade. O leitor que não se iluda: as notas algumas vezes fazem rir, outras vezes enternecem; mais além entreabrem as portas da intimidade do autor. Muitas linhas, porém, provocam apertos no estômago. Saramago toca incessantemente em feridas como a ignorância e a violência, mostrando que as duas continuam alimentando uma à outra.
Ele deixa clara a sua indignação, de várias formas. Seja transcrevendo os protestos contra “O Evangelho segundo Jesus Cristo” de vários leitores, seja chamando de monstros os traficantes de órgãos humanos que mostraram a cara numa notícia de jornal, seja tecendo em forma de poesia uma história que parece irreal mas, assegura ele, é incrivelmente verdadeira: durante a Guerra Civil Espanhola, um piloto recebeu ordens de bombardear Badajoz, uma pequena cidade na fronteira com Portugal. Chegando lá, viu pessoas andando nas ruas, desviou o avião e largou as bombas no campo. Quando regressou à base, seu superior quis saber como correra a missão, e ele respondeu que nada fizera, porque “havia lá gente”. É lógico que essa história é desconhecida do grande público, lamenta Saramago, e até hoje nunca virou argumento de um filme como todas as outras bombas de todas as guerras que vitimaram milhares de vidas.
— A grande palavra que se está a precisar nem sequer é a paz. A grande palavra que se está a precisar é “não” — chicoteia o escritor na entrevista concedida num hotel em Lisboa, onde passou dias para revisar as provas do quarto volume dos “Cadernos de Lanzarote”.
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Em Portugal, o primeiro volume, o diário relativo ao ano de 1993, fora lançado nos primeiros meses de 1994, o segundo em 1995 e assim sucessivamente. No Brasil, porque lançados tardiamente, a edição dos “Cadernos” engloba num só os três primeiros volumes portugueses, correspondentes aos anos de 1993,94 e 95. O diário de 96, esse quarto volume que inclui, em seu início, o período em que Saramago passou vários dias no Brasil, será lançado em Portugal no início de abril. Mesmo assim, o escritor, que não permite que se olhe as provas de seus livros, faz confidências. O quarto volume revela o nome do piloto espanhol, Leocádio Mendiola, e traz escritos inéditos da mulher de Saramago, a espanhola Pilar del Río:
— Quando fomos receber o Prêmio Camões no Rio de Janeiro, tenho que dizer que me deu um certo sentimento de pudor escrever o meu diário dos dias que ia passar no Brasil. Na Bahia, com Jorge Amado e Caetano Veloso; no Rio, com Chico Buarque e João Ubaldo Ribeiro... Então pedi à minha mulher que se encarregasse do diário desses dias.
Tudo o que aconteceu na visita ao Rio, revela o escritor, foi descrito pela mulher. Ele apenas passou o texto do castelhano para o português sem cortar ou acrescentar nada. Essa cumplicidade remonta às passagens (e são várias) em que Saramago cita Jorge Amado e a mulher Zélia nos “Cadernos de Lanzarote”. Nos diários já existem muitas referências a cartas trocadas entre os dois. No quarto volume, aparece a correção de uma distorção relativa à sua homenagem ao escritor baiano na cerimônia de entrega do Prêmio Camões.
— Eu disse, então, que a minha admiração e o meu respeito chegavam quase à veneração. No dia seguinte, saiu publicado num jornal brasileiro que eu tinha “quase admiração” por Jorge Amado — lembra.
Entre risos, o português emenda outra passagem:
— Sempre achei um disparate dizer que a nossa pátria é a língua portuguesa, mas Fernando Pessoa tinha dito isso, e os políticos não faziam outra coisa senão repetir, porque não tinham lido efetivamente o que Pessoa quisera dizer. E assim, no meu discurso daquele dia do Prêmio Camões, eu disse que estávamos tratando mal a nossa língua e que continuaríamos a repetir à náusea que a nossa pátria é a língua portuguesa. No dia seguinte, saiu que eu disse que “é preciso repetir até a náusea que a nossa pátria é a língua portuguesa”.
Nos “Cadernos de Lanzarote”, o autor diz que ele próprio só descobriu com o tempo existir uma tênue fronteira entre o que o poeta quis dizer e a realidade. “Para ser grande, sê inteiro: nada/ Teu exagera ou exclui./ Sê todo em cada coisa,/ Põe quanto és/No mínimo que fazes”, aconselhara Pessoa. “Fiz o que pude para não ficar atrás do que se me ordenava”, escreve Saramago em 11 de janeiro de 1995. “Depois compreendi que não podiam chegar-me as forças a tanto, que só raros deveriam ser capazes de ser tudo em cada coisa”. Em outras passagens, ele faz referências a Salman Rushdie e seu livro “Os versos satânicos”, que continua na mira dos aiatolás.
— As coisas mudam muito na superfície, quer dizer, o modo como nos vestimos hoje tem pouco a ver com o século XIX. Mas o que muda muito mais devagar ou muda às vezes para pior é o que está por dentro de nós. Eu descobri recentemente uma coisa que é totalmente óbvia: o simples fato de viver é inseparável de um certo tipo de violência. Se quero comer um bife, isso pressupõe a morte de um boi, o que não é muito diferente da aranha que apanha uma mosca na teia para se alimentar. Portanto, a violência é condição da sobrevivência das espécies. Agora há uma espécie que acrescentou à violência a crueldade, e essa espécie é a nossa. O homem é o único animal cruel que de fato existe.
Ao longo dos mais de 30 minutos de conversa, Saramago revela outros segredos suscitados pelos “Cadernos”. Suas referências aos fotógrafos que resolveram pedir-lhe escritos para suas fotos nos últimos anos, deságuam no prefácio que fez para o livro do brasileiro Sebastião Salgado, “Terra”. Indagado se é sobre os sem-terra, a grande ferida brasileira tanto para o fotógrafo como para o escritor, Saramago não evita a confissão:
— Creio que é um livro que vai ser um choque. A reforma agrária que não se faz se estendeu tanto que, por razões sociais, as terras deveriam ser desapropriadas. São 50 anos de luta, de fome, de miséria, de assassinatos.
CONTEXTO
José Saramago veio diversas vezes ao Brasil, onde tinha como amigos Jorge Amado, Chico Buarque, Caetano Veloso e Sebastião Salgado. Em quase todas essas viagens, o português dava entrevistas e se divertia com as confusões feitas entre os lusófonos de lá e os de cá. Em março de 1997, no entanto, a conversa com O GLOBO foi diferente: aconteceu em Lisboa, onde ele preparava o lançamento de mais um volume dos “Cadernos de Lanzarote”, um ano antes de se tornar o primeiro — e até hoje o único — autor de língua portuguesa agraciado com o Nobel de Literatura. Publicada no caderno Prosa & Verso, a entrevista mostra Saramago como de costume: crítico das injustiças, ácido e irônico quando necessário e muito direto.
Este conteúdo faz parte do especial em comemoração pelo centenário do jornal. Acesse a página O GLOBO 100 anos para ver mais reportagens.