Mães de mortos da megaoperação do Rio relatam dor, culpa e frustração ao tentaram impedir que filhos entrassem para o crime
Entre as dezenas de famílias que lotaram a porta do Instituto Médico Legal (IML) do Rio desde quarta-feira, há mães que carregam mais do que a dor da perda: convivem com a culpa e as lembranças de uma luta perdida cedo demais. Elas viram os filhos ainda adolescentes se afastarem de casa, seduzidos por promessas de dinheiro fácil, status e proteção em territórios controlados pelo tráfico. Esperaram dias para conseguir reconhecer e sepultar os corpos — entre os 121 mortos na operação mais letal da história do Rio, nos complexos do Alemão e da Penha.
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São mães que, mesmo cientes da vida levada pelos filhos, cobram o direito de se despedir. Nos relatos, há um fio em comum: a tentativa frustrada de impedir a escolha que, no fim, selou o destino de cada um deles. Falam de meninos que estudaram, trabalharam, tinham sonhos — e que acabaram engolidos por uma realidade onde o crime se apresenta como única saída .
Nos relatos feitos ao GLOBO, três mulheres contam, duas pedindo anonimato, quem eram esses filhos antes de virarem corpos estirados na Praça São Lucas, na Penha.
'Eu dei educação e uma casa onde nunca faltou nada’
Mãe de Thiago Ribeiro Pareto Barbosa, que não via o filho há 8 anos
Márcia Foletto
“Meu filho, Thiago Ribeiro Pareto Barbosa, tinha 28 anos. Desde os 20, ele escolheu essa vida. E, desde então, faz oito anos que eu não via o meu filho. Fiquei no IML desde quarta-feira, esperando para reconhecer seu corpo. Ele mesmo quis assim. Disse que não queria que ninguém da família soubesse de nada dessa vida dele no crime, para não respingar na gente, para que ele pudesse seguir aquela vida sem arrastar ninguém junto. Eu não entendo até hoje. Fez o ensino médio completo, fez curso de auxiliar de administração, trabalhou como jovem aprendiz. Eu dei educação e uma casa onde nunca faltou nada. Coisas dele. Nenhum dos meus outros filhos seguiu esse caminho — todos trabalham, todos moram comigo. Mas ele quis ir por outro rumo.
A gente morava na Vila da Penha. Quando o Comando Vermelho começou a dominar tudo, eu decidi sair. Eu me mudei para Benfica. Mas ele quis ficar. Disse que ia ‘viver a vida dele’.
Eu tenho certeza de que foi influência dos amigos e dessa ilusão de vida fácil. Essas promessas de dinheiro, de poder, de respeito, que, no fim, não passam de um engano. Thiago acreditou nisso. Acreditou que o caminho do crime era uma saída.
Eu sempre respeitei o silêncio dele, por mais que doesse. Mas, no fundo, uma mãe nunca deixa de esperar.
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A notícia chegou por uma foto. Um conhecido antigo, que o conhecia lá da Penha, me mandou a imagem: “é o Thiago”. Eu custei a acreditar. Oito anos sem ver meu filho — e agora só o reconheço numa foto dele morto.
Naquela hora, tudo o que eu consegui fazer foi vir para cá (o IML). Sou operadora de caixa, larguei o trabalho, pedi liberação.
Eu nunca deixei faltar nada. Não sei o que faltou.
Thiago
Reprodução
Quando ele começou a se envolver, foi com amizades diferentes. Começou a aparecer com coisas caras, relógio. Eu perguntava, e ele desconversava.
Não sei se dá para chamar isso de despedida. Porque, para mim, ele já tinha partido há muito tempo. Mas, mesmo assim, uma mãe nunca se acostuma. Nunca para de ser mãe”.
(Por Mãe de Thiago Pareto Barbosa)
‘Kauan! Pode sair da mata, mamãe tá aqui! Já pode sair’
Mãe de Kauan de Souza
Gabriel de Paiva
“Meu menino, Kauan de Souza, tinha acabado de completar 18 anos. Na madrugada daquela terça-feira, chamaram ele uma hora da manhã para ir ‘ficar a postos’. O padrasto dele falou: ‘Não vai, Kauan. Fica em casa, não entra na mata’. Mas ele foi. Horas depois, assim que liberaram, fui para a mata atrás dele, gritando, chamando: ‘Kauan! Pode sair da mata, mamãe tá aqui! Já pode sair!’. Toda vez que eu via um corpo, achava que podia ser ele. Toda vez que eu via alguém de camisa preta — a roupa que ele usava na última vez que vi — meu coração disparava. Era como se eu ainda tivesse esperança de que ele fosse aparecer, escondido, esperando ajuda. Mas ele não apareceu.
Ali, como mãe de criação dele, eu senti que ele não estava desaparecido, estava morto.
Kauan foi criado por mim desde pequeno, como um filho mesmo. Trabalhava com o pai num ferro-velho e sonhava em ser bombeiro e conquistar o carro dele. Era um menino bom e medroso. Tinha depressão e ansiedade. Ele me ligava toda noite só para dizer que me amava. Mas, há uns três meses, ele começou a se afastar de casa.
Kauan
Reprodução
Tudo começou quando os meninos da comunidade descobriram que ele sabia dirigir. Aprendeu com 13 anos, dirigia melhor que muito adulto. Chamavam ele para levar o carro, fazer os ‘corres’. Assim, ele foi entrando, aos poucos, sem arma, só dirigindo.
Ele achava bonito estar no meio deles, chegar nos bailes funk ao lado deles de cabeça erguida, com a roupa mais bonita e a garota mais bonita do lado.
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Eu dizia para ele: ‘Sai dessa vida, meu filho, isso não é para você. Você teve tudo, você sempre mamou leite Ninho com Mucilon na mamadeira’. Mas ele achava que aquilo era respeito. Que só assim iam olhar para ele. Ele se envolveu por influência, por se sentir pertencendo a algum lugar.
E eu tenho certeza: se ele tivesse sido preso, nunca mais voltava para o crime. Ia ser um susto que ia fazer ele se arrepender. Conheço o meu filho.
Na sexta-feira, depois de dois dias na porta do IML, reconheci o corpo. Era ele. Meu menino, aquele que falava que só queria ser visto. Queria ser alguém ‘importante’. Meu filho podia estar preso, podia estar pagando pelos erros dele. Mas devia estar vivo”.
(Por Mãe de Kauan de Souza)
‘Eu sou mãe! Tô aqui para pegar meu filho! Leva preso, não mata!’
Taua Brito
Marcia Foletto
“Meu filho, Wellington Brito, de 20 anos, ficou encurralado lá na Mata da Vacaria, na Penha. Eu sei disso porque ele me mandou mensagem umas oito da manhã da terça-feira pedindo ajuda. Disse: ‘Mãe, vem aqui, vem me buscar’.
Na cabeça dele, se eu fosse, eles iam levar ele preso. Eu saí de casa correndo, com os documentos dele e os meus, achando que iam deixar eu subir. Eu só queria tirar ele de lá, para ele não morrer. Para ele pagar pelo que estava fazendo, mas preso, vivo.
Eu gritei para eles: ‘Eu sou mãe! Estou aqui para pegar meu filho! Se tiver que levar preso, leva, mas não mata!’. Quando consegui subir, depois que a polícia foi embora, meu filho já estava morto com um tiro na cabeça. Eu encontrei ele.
Desde então, fiquei dias na porta do IML, chorando, até que consegui que ele fosse liberado e enterrado, na sexta-feira.
Eu não defendo o que o Wellington fazia. Sou uma mãe negra, solteira, microempreendedora. Vendo bolos e doces, e luto todo dia para criar meus filhos, ele e a mais nova. Achei que ele, vendo isso, não fosse seguir esse caminho.
Wellington Brito
Reprodução
Nunca apoiei a vida que ele escolheu. Mas, na favela, não temos muitas oportunidades. Ainda assim, nunca ia virar as costas para ele. Porque, antes de qualquer coisa, ele era meu filho.
O que eu sempre dizia a ele era para ter juízo e que a vida é difícil, mas que ele devia encarar tudo com responsabilidade, sem revoltas.
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Eu entendo a dor das mães dos quatro policiais mortos, não é diferente da minha, porque somos mães.
Não era para ser assim. Deus não fez para ser assim. Os pais é que deviam ser enterrados pelos filhos, não o contrário.
Todas as minhas metas de vencer incluíam ele e a irmã. Agora, a metade de mim foi embora com o Wellington.
Queria acordar e ver que tudo isso foi um pesadelo. A gente ainda tinha tanta coisa para viver. Eu dizia pra ele que eu ia vencer por ele e pela irmã dele. Agora não sei lidar com o fato de que ele não vai mais chegar em casa”.
(Por Taua Brito)
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